João Maria Pacheco (1995-2021)
Ontem perdi um amigo.
Há pessoas que vêm a este mundo para nos mostrar infinitude. A deles e a nossa.
O Pacheco é uma supernova, uma explosão estelar cuja luz é tão poderosa quanto uma galáxia inteira. E esta luz vai ficar connosco para o resto das nossas vidas.
Uma alma brilhante, que viveu intensamente. A vida do Pacheco foi uma lição: como se pode ser tão bondoso e produzir um trabalho tão claro em pouco tempo? Pureza e generosidade, o seu sorriso enchia uma sala.
Conhecemo-nos nas aulas de Práticas de Som do Estrela. Metade da turma não aguentava aquilo. Nós ficávamos horas a fio lado a lado, de sorriso na cara e olhos esbugalhados, unidos na irmandade do assalto sensorial.
No teu trabalho, vi formas que apareciam naqueles filmes que mal conseguíamos apreender: universos inteiros, microbiologias, símbolos de mundos imaginários e fragmentos de civilizações perdidas.
Sentados no chão dos corredores da faculdade, encostados à parede, laptop nos joelhos, um fone em cada orelha a mostrar-te sons em bruto que tinha produzido na noite anterior. Apresentaste-me todos os teus amigos e de repente, eu já não estava sozinho. Cervejas no pátio, visitas ao atelier da Junqueira, inaugurações.
Que ano mau foi este. Como nos separou a todos. Uns dedos numas teclas e sabemos que estamos os dois bem. Vou-te visitar em breve. Deixa lá isto acalmar. Ele está mesmo bem, no campo.
Estivemos todos juntos à volta duma grande fogueira por tua causa. Até agora, João, tu és a cola que nos une. Hoje é o primeiro dia em que as escolas recomeçam para os mais novos. Ainda faltam mais três semanas para as galerias e museus abrirem, os nossos tabuleiros de xadrez, Pacheco.
Nunca me vou esquecer da alegria com que me visitavas e o apoio que sempre me deste. Como estavas ansioso para ver a exposição que vou inaugurar e como agora esta já não me parece importante.
Falámos muitas vezes de construir juntos um mundo digital baseado nas suas pinturas. Mas claro que nunca começámos a trabalhar nisso. E porque é que havíamos de ter começado? Havia tempo.
Lisboa, Berlim, Nova Iorque, Yangon, tinha a certeza que eu e o Pacheco íamos crescer juntos e que nos encontraríamos muitas vezes pelo mundo. E como não? Facilmente se tornaria num dos melhores artistas da sua geração.
Tenho saudades do passado mas tenho ainda mais saudades do nosso futuro.
Originalidade, inventividade e inteligência. Nunca vou esquecer o meu espanto ao deparar-me com a forma como tinha transportado o chão do seu estúdio para a sua última exposição individual. Um triunfo.
A forma como pintava influenciou-me profundamente. Sempre que percorro a destruição de uma obra, olho para materiais a quem ninguém dá importância, e entendo-os como matéria-prima. Isso devo a ele e a mais alguns do seu círculo, a quem tenho prazer de chamar amigos.
Numa era em que se diz que está tudo inventado e que nada de novo pode ser criado, com muito trabalho estes miúdos mostravam diariamente como isso é uma mentira estúpida.
Transferência, sobreposição, destruição, degradação. Materiais baratos, sem materiais, só com movimento ou operações na paisagem, não havia desculpas para o Pacheco. Nos dias em que não me sentir com força para trabalhar, prometo que me vou lembrar do teu exemplo e pôr mãos à obra.
Li sobre uma carta que Einstein escreveu à família de um amigo falecido, na qual explica que a nossa noção de espaço-tempo é uma ilusão e que ele ainda cá estava, como se toda a cronologia e espacialidade pudesse ser transposta para um deserto e ele só estivesse para lá da próxima duna.
Cartas, geo-localização, algoritmos, tudo isto parece inútil quando só queremos encontrar o caminho para o voltar a ver. Na mesa, tenho um mapa cujas fronteiras se modificam a cada momento.
Nas minhas viagens, espero que um dia o consiga reencontrar. Noutro lugar, mais jovem, com outra cara, mas com o mesmo sorriso e aquele brilho nos olhos. Sempre o Pacheco.
Até já querido amigo.
João Maria Pacheco (1995-2021)
https://drive.google.com/file/d/18s6FYkn3rNaAYx0-5El_nS-ZIF1KNktf/view
#joaomariapacheco